Ninguém olha nos olhos de um entregador em dia de chuva.

A gente vira parte da paisagem.
Ou melhor: parte do problema.

Somos o atraso.
A pizza que chegou fria.
O barulho da moto.
A encomenda que demorou mais do que o esperado.

Ninguém enxerga o cara que está pilotando.

Era uma sexta-feira de dilúvio.
Minha capa de chuva já tinha desistido de segurar a água.
Tênis encharcado.
Meias molhadas — aquela sensação que dá vontade de chorar.
O corpo tremendo de frio.
E, pra piorar, uma fome que doía.

Eu passava a noite inteira levando comida nas costas, mas muitas vezes não tinha tempo — ou dinheiro — pra comer a minha.

Apertei o interfone de um prédio chique.

— Entrega pro 502.

Fiquei esperando na calçada, a água descendo pelo pescoço.
Só pensava: “Quero entregar logo, bater a meta e ir pra casa.”

Eu me sentia pequeno. Invisível.
Só mais uma peça do sistema.
Quase tão ignorado quanto a minha bicicleta.

O portão abriu.

Desceu uma senhora, por volta de uns 60 anos.
Normalmente a interação dura cinco segundos:

“Boa noite.”
Entrega o pacote.
A pessoa vira as costas.
Fim.

Mas ela parou.

Não olhou pra maquininha.
Nem pro pacote.

Ela olhou pra mim.

Reparou na minha mão tremendo.
Na água pingando do queixo.
No meu estado de completo abandono.

— Meu filho… espera um pouco.

Eu gelei. Pensei que tinha errado o pedido, que vinha reclamação, bronca, algo assim.

Mas foi então que ela fez algo que mudou minha vida.

MEIO — O GESTO QUEBRADO PELA CHUVA

Ela desapareceu dentro do prédio por uns segundos.
Eu fiquei ali, desconfortável, sem entender nada, tremendo ainda mais — de frio e de ansiedade.

Quando voltou, trazia uma toalha seca, uma sacola e um olhar que eu não via fazia muito tempo: compaixão de verdade.

— Entra aqui na guarita, senão você vai ficar doente — disse ela.

Eu hesitei. Nós, entregadores, somos treinados pela vida a nunca “invadir” o espaço do cliente.

— Pode entrar, meu filho. Eu estou mandando.

Entrei.

Ela colocou a toalha nos meus ombros como se eu fosse um neto voltando da chuva.

— Você já comeu hoje?

Travei. Não sabia se podia responder a verdade.

Ela não esperou.

Da sacola, tirou um prato de comida quente — arroz, feijão, carne, e até um pedaço de bolo — tudo embrulhado direitinho.

— Senta e come. Agora. A entrega pode esperar um minuto. Sua saúde, não.

Aquela comida tinha cheiro de casa.

Eu nunca vou esquecer o sabor.
Não era só comida.
Era calor.
Era olhar.
Era humanidade.

Enquanto eu comia, ela colocou meu pedido na bancada e disse:

— Eu tenho filho. E se um dia ele estiver trabalhando na chuva, eu espero que alguém faça por ele o que estou fazendo por você.

Eu não consegui responder. Só chorei silenciosamente.
Chorei de frio, de fome, de alívio…
e de sentir, pela primeira vez em muito tempo, que alguém me via.

FIM — O QUE REALMENTE FICOU

Quando terminei, devolvi o prato envergonhado.

— Desculpa… atrasei sua noite — murmurei.

Ela sorriu.

— Você salvou a minha. Eu precisava lembrar que ainda existe bondade no mundo.

Pegou o lanche, assinou a entrega e, antes de eu sair, colocou um envelope na minha mão.

— Não olha agora. Só quando chegar em casa. E por favor… se cuide.

Voltei pra bicicleta ainda tremendo — mas por outro motivo.

Quando cheguei em casa, abri o envelope.

Dentro, havia R$ 200 e um bilhete:

“Pra você comer quando estiver com fome.
Pra você lembrar que você não é invisível.
— Dona Isabel, 502.”

Guardei aquele bilhete até hoje.

Porque naquele dia, no meio da chuva, no meio do cansaço, no meio de uma vida que quase sempre me ignora…

Alguém me viu.

E isso — mais do que o dinheiro, mais do que a comida —
mudou tudo.


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